REEDIÇÃO DE LIVRO DE GRAÇA
ARANHA
Escritores entre o Império e a República
Antonio Carlos Secchin*
Há alguns meses, voltou às estantes
das livrarias, por uma feliz iniciativa da editora Topbooks e da
Academia Brasileira de Letras, um clássico da epistolografia
brasileira. Referimo-nos à Correspondência de Machado
de Assis e Joaquim Nabuco, que, apresentada e anotada por Graça
Aranha, ultrapassa em muito o âmbito de conversa entre amigos
e levanta questões importantes acerca do papel do intelectual
e do escritor no período compreendido entre o final do Império
e os primórdios da República Velha.
Esta terceira edição, enriquecida
por excelente estudo introdutório de José Murilo de
Carvalho, índice onomástico e caderno de fotos, vem
a lume 61 anos após a anterior. A primeira publicação
do livro, de 1923, ocorreu graças à generosidade de
Monteiro Lobato. O autor de Urupês abriu as portas de sua
editora para Graça Aranha, um homem louvado (enquanto tal
louvor foi politicamente vantajoso) pelos mesmos modernistas que
haviam, anos antes, detratado com virulência Lobato. E no
ano seguinte, como se sabe, Graça Aranha acabaria rompendo
de modo estrondoso com a Academia Brasileira de Letras, para, pouco
depois, ser igualmente abandonado e ironizado pelos ex-aliados modernistas.
Com o prestígio abalado tanto entre as hostes da vanguarda
quanto entre os companheiros do Petit Trianon, Graça Aranha
jamais repetiu o sucesso que obtivera com seu título de estréia:
Canaã, de 1902. A demanda, esmaecida com o tempo, por sua
produção literária, parecia confiná-lo
à condição de autor de um livro só,
e, ainda assim, Canaã, hoje, integra o rol de textos mais
citados do que propriamente lidos.
Muitos consideram a introdução
à correspondência Machado/Nabuco a obra maior de Graça
Aranha, e não faltam motivos para isso. Às vezes,
sobretudo em decorrência da discreta índole machadiana,
as cartas se apresentam como um esboço ou esqueleto a que
nosso comentarista acrescenta nervos e consistência, esclarecendo
pormenores ocultos na História e desenhando com maestria
o perfil psicológico dos dois missivistas a partir de algumas
frases certeiramente pinçadas do diálogo epistolar.
Num duplo papel de leitor a posteriori e de personagem atuante
em certos episódios narrados nas cartas Graça
Aranha consegue sair-se com exemplar equilíbrio, seja na
justeza das observações, seja no olhar ao mesmo tempo
crítico e generoso com que dimensiona a figura particular
e pública de ambos os escritores, seja nas articulações
que aponta entre a política e a literatura, seja ainda na
límpida dicção estilística que imprime
a cada página de seu estudo.
Destacando-se entre todos os temas, percebe-se
como a consolidação da Academia Brasileira de Letras
foi, de fato, uma das maiores motivações da vida de
Machado. Ainda aqui, revelam-se os dois temperamentos fraternos,
mas contrastantes: Nabuco na linha de frente, agitador, propondo
e hierarquizando candidaturas, comentando-as abertamente, manifestando-se
favorável à inclusão de alguns ''notáveis''
para comporem o quadro acadêmico; Machado, sereno observador,
evitando opinar sobre nomes, e defendendo, acima de tudo, a necessidade
de fortalecer a instituição.
Graça Aranha, em formulação
lapidar, o considerou ''o mais livre dos escritores e o mais conservador
dos homens''. Pouco propenso a externar suas simpatias políticas,
Machado, todavia, jamais se furtou a apoiar a atuação
de Nabuco e a consolá-lo nos eventuais reveses da carreira
diplomática. Por outro lado, não lhe faltaram a palavra
e o amparo do amigo no momento de sua maior crise pessoal: o da
morte da esposa Carolina. A velhice e a morte comparecem, ao lado
da onipresente Academia, como temas quase obsessivos na parte derradeira
da correspondência. A defesa acadêmica se confundia,
em Machado, com a afirmação e a dignificação
da própria atividade literária, num obstinado esforço
de conferir ao ofício de escritor uma ressonância simbólica
antes restrita apenas às áreas do poder econômico
e político. Certamente foi um grande vitorioso, a ponto de
Graça Aranha registrar, a propósito dos funerais do
mestre: ''O seu enterro foi uma apoteose. Pela primeira vez um simples
homem de letras foi enterrado neste país como um herói''.
Se o homem era ''reservado, tímido, e
se por acaso se confessa, é pela metade'', o ensaio de Graça
Aranha nos ajuda a compor com mais clareza uma galeria de retratos:
não apenas o de Machado, mas o de Nabuco e o seu próprio,
na medida em que, no gesto de analisar a ambos, ele mesmo se torna
alvo da análise do leitor. Assim, movida por uma ausência
(a de Carolina) e por uma presença (a Academia), a conversa
de Joaquim Maria e Joaquim Nabuco nos comove até hoje, valorizada
pelo notável trabalho interpretativo, de amor e rigor, levado
a cabo por Graça Aranha.
*Poeta, crítico e membro da Academia Brasileira
de Letras
JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro
30/06/2004
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