ROMANCE É OBRA CULT QUE SE PRESTA
A MÚLTIPLAS INTERPRETAÇÕES
Mônica Rodrigues da Costa *
A chave para a leitura de Como deixei de
ser Deus é a intertextualidade, procedimento clássico
da literatura comparada, explorado igualmente na modernidade tardia,
transmidiática, hoje. Aqui a referência de leitura
é formal. Na capa do livro, o autor dá pistas do lugar
onde o personagem-narrador inaugura seu estilo – o trocadilhesco
Universo da representação. O título da obra
“Desvio para o vermelho”, de Cildo Meireles, na fotografia
da capa, alude ao afastamento das galáxias. Mestre da ironia,
Meireles aparece poucas páginas adiante, com “Glove
Trotter”. Em “Desvio”, objetos domésticos
recebem a tinta irônica da saturação.
Cada capítulo curto do novo livro de
Pedro Maciel pode ser considerado um fragmento na linha machado-oswaldiana
de reinvenção do romance. Um Deus conta sua metamorfose
até a saturação. De estilo conciso, Maciel
explora a filosofia e a blague modernista – “O esquecimento
como um passatempo. O olho da memória, com o tempo, começa
a usar óculos”. – persegue a narrativa mítica
e expõe o modo como pensadores canônicos definem os
deuses.
O autor dissolve o enredo em um discurso metafórico.
Negrita frases e faz destaques tipográficos. Despontua. Alguns
fragmentos se repetem e vários não passam de quatro
linhas de extensão. Podem ser epigramas (em seu sentido polissêmico).
De todo modo, então, de uma galáxia
ameaçada de ser destruída por humanos, conforme avisa
o prólogo, o protagonista, condutor do enredo no romance
modelo, é um pobre diabo que pensa que é Deus e não
se reconhece no mundo: “Ontem visitei a cidade em que nasci;
ninguém me reconheceu. Deus não se revela ‘no’
mundo". A narrativa é conceitual, tece imagens do
tempo mítico. Transfigurando a verossimilhança, o
personagem fala em várias pessoas, do singular e plural,
e trata o leitor com intimidade, evocando o estilo de Machado de
Assis do Brás Cubas, que tem absurdamente o narrador
póstumo.
O livro tem conotação ecológica
na indagação sobre o mundo. Pela presença de
muitas referências, é uma obra aberta e cult
(nas acepções do semioticista Umberto Eco), para a
qual há múltiplas interpretações, porque,
sobretudo, o narrador nada conclui. Ainda que se defina como romance
e se desenvolva na frase, em Como deixei de ser Deus prevalece
o estado lírico, de intensidade e prolongamento do instante.
A destituição do gênero romance talvez esteja
nessa intromissão da lírica na épica: “O
tempo presente já vai longe da gente. Horas paradas;
vento nas folhas”.
O autor acrescenta um significante filosófico
– espécie de campo expandido –, devido à
intromissão formal, entre as outras, da numeração
dos aforismos, escritos para serem lidos mais de uma vez, ordenados
de forma desconstrutiva – alguns números são
suprimidos, além de evocar os ensaios sobre poesia e filosofia
de Hölderlin e outras psicologias da composição
– de Baudelaire, Cabral, Rosa. Neles, o leitor-detetive encontrará
alusões literárias, bíblicas.
A ambivalência entre prosa e poesia e entre
romance e filosofia é ampliada em todos os aspectos. Deus
estranha o tempo, o mundo e a si mesmo: “Ontem ele deu
um perdido no passado e correu para se adiantar mas não parou
lá adiante como se fosse um antes”. Como em Orlando,
de Virginia Woolf, o tempo corre para frente e para trás.
A discussão é uma espécie
de Doutor Fausto (de Thomas Mann) ao contrário: “pelo
amor de Deus se vai ao inferno. Deus é um bom Diabo”.
Ou: “O Diabo é uma versão de Deus; Deus é
um verso do Diabo”. Ironicamente, é como se Deus
fosse o próprio verbo, desenhado por palavras em justaposições,
uma fórmula matemática ou o sol e a lua. “Eu
sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, diz o Senhor
Deus: aquele que é e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso.
Se Deus existisse todo mundo ficaria sabendo”.
* Mônica Rodrigues da Costa é doutora em semiótica
e comunicação, poeta e autora de Era tudo sexo,
Ed. Maltese.
O ESTADO DE S.PAULO
24/10/2009
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