DEIXE DE SER DEUS
Um livro que pode converter você em homem
de novo
Luís Antônio Giron *
Deus está morto? Uma dos movimentos intelectuais
mais detestáveis da atualidade é o dos pregadores
ateus. Eles já responderam à pergunta que acabo de
fazer, sem dar tempo ao tempo ou ao esquecimento. Dizem que sim.
Pensadores como Richard Dawkins e jornalistas como Christopher Hitchens
se acham no direito de interpelar seus leitores e seu público
de palestras para questionar a validade da fé alheia. Há
três anos, eles passaram a adotar a postura agressiva ao preconizar
que os criacionistas são ridículos, que Deus não
existe e a religião é o ópio do povo. É
uma opinião a ser respeitada. Mas o modo como esses pensadores
atuam no eterno debate sobre a fé soa prepotente. Os ativistas
sem-Deus desprezam interlocutores. Ostentam sua superioridade intelectual
e acadêmica para intimidar aqueles que são tementes
a Deus. No fundo, o que esses professores enfurecidos anseiam é
tomar o lugar da divindade e se tornar deuses da Religião
da Ciência. Querem assassinar Deus e virar... deuses.
De minha parte, sou tão cético
que não quero nem posso descrer em Deus. Se Ele estivesse
morto e Christopher Hitchens redigisse o atestado de óbito,
eu talvez visitasse o Seu túmulo para levar-Lhe flores. Nem
por isso aceito virar alvo da intolerância ateísta.
O fato de aceitar forças superiores ou de compreender perfeitamente
a fé e a espiritualidade, sem alcançá-la, não
me impede de acreditar também na teoria da evolução
de Charles Darwin. Tenho dúvidas sobre a forma da divindade,
ou seja lá o que for, se é Natureza, antepassados,
ou pura energia. Separo fé de mundo concreto. A metafísica,
dizia Borges, é a forma superior da literatura fantástica.
E eu creio na fantasia. Não acho, enfim, que os cientistas
tenham o direito de assumir o papel de xamãs da Ciência
e investir contra os outros com suas poderosas armas lógicas
de destruição em massa.
Para eles e aqueles que se acham Deus, tomo a
liberdade de assumir o papel de conselheiro de almas. Gostaria de
prescrever um dos livros mais interessantes que li nos últimos
meses – e certamente uma das obras mais importantes da literatura
brasileira de 2009. E é por isso que escrevo esta coluna,
não para fazer uma jeremiada debruçado sobre Deus
morto e Seus detratores. Escrevo para falar do romance Como deixei
de ser Deus (Topbooks, 150 páginas, R$ 29,00), do escritor
mineiro Pedro Maciel. É conveniente não confundir
a obra com mais um daqueles títulos de autoajuda ficcional
que infestam as livrarias que restaram pelo mundo. O poder do texto
de Maciel é o do pensamento negativo, se pela expressão
entendemos o impulso da reflexão crítica e metafísica
sobre a existência humana e seu papel no universo.
A história do livro, se ela pode ser resumida,
presta-se a várias interpretações, como obras
literárias que se prezam. Tenho para mim duas leituras. O
personagem-narrador afirma: “Eu morri em 2046”. Pode
ser o drama de alguém que se crê Deus e, progressivamente,
mesmo deslumbrado de si próprio, despe-se da empáfia
ao se dar conta de sua condição mortal. Ou então
a história da própria queda de Deus. Estatelado no
deserto do planeta Terra, ele (não mais Ele) descobre que
não passa de um ser imitado e passageiro no tempo e do espaço.
E que o mundo que acabou de descobrir não é o seu
(e não mais Seu) mundo. Ambas as tramas são fascinantes
e levam à reflexão sobre a transcendência em
um mundo esfrangalhado pela desumanização, o niilismo
e a aniquilação.
Mas o melhor do livro é a forma que o
autor adota para construir a “narrativa”. Em vez dos
procedimentos comuns da prosa, ele conta a derrocada dessa estranha
deidade protagonista por meio de aforismos, frases curtas que impressionam
pelo caráter assertivo e, ao mesmo tempo, pela fragilidade
do sujeito que as redige. Um sujeito que se desloca a tal ponto
de o leitor jamais conseguir capturá-lo. É como se
Deus ou um genérico se esgueirassem de qualquer possibilidade
de apreensão, ou definição exata, ocultando-se
em um fragmento encarnado em volume.
Pedro Maciel se porta como um cético apavorado
pela exatidão. De tão descrente, passa a sugerir que
acredita. Seus aforismos – e de outros autores citados, mas
não mencionados – assumem a condição
poemas precários ou capítulos curtos e falhos. Nisso,
Como deixei de ser Deus não tem nenhum similar na
literatura de que eu tenho notícia. Porque o gênero
sintético do aforismo (Friedrich Schlegel denominou o aforismo
de um ensaio condensado que se assume como fragmento) é usado
para transmitir mensagens, não contar histórias. O
narrador (ou sujeito lírico, ou filosófico) descreve-se
assim, na terceira pessoa do singular: “ele pensa que é
deus mas não passa de um pobre diabo (...) loucos guardam
tristezas ancestrais”. Para definir a intenção
da obra, ele cita Montaigne: “O que me faz rir não
são as nossas loucuras, mas os nossos saberes”. E como
a dar um recado aos beatos da ciência, ensina: “O que
nos impede de construir pontes sobre os vazios? Metafísica
é recordar o mundo; física é lembrar do mundo
o tempo todo.” E a filosofia? “Tudo é filosofia,
mas nem tudo é poesia. A filosofia poderia ser mais bem expressa
como poesia”. E “há dias que são como
poemas, não servem para nada”.
O pequeno e denso livro de Maciel está
tão repleto de paradoxos enumerados no fio de ditos, que,
no final, o leitor sente alívio em se descobrir humano novamente.
Por essa razão, talvez, os ateístas panfletários,
caso se dispusessem a lê-lo, poderiam receber lições
e perder a mania de grandeza. Como diz o personagem-narrador: “Graças
a deus que ninguém é deus!”
*Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve
sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e
da TV.
Postado no site da revista ÉPOCA
20/02/2010
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